Boletim 1: Bolívia
Copacabana, 27 de Outubro de 2005
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Meus Caros!
Depois de 2 semanas e alguns dias de isolamento em território boliviano, farei um breve boletim descritivo dos acontecimentos para que saibam por onde tenho me atirado.
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Cheguei na Bolívia no dia 10 de outubro por Santa Cruz de la Sierra, que é a segunda maior cidade boliviana, com perfil bem diferente do resto do país, pois não está no altiplano e não tem grande maioria da população indígena. Santa Cruz concentra a maior parte da riqueza na Bolívia, principalmente por ser a maior zona de produção agrícola e também de exploração de gás e petróleo. Durante o vôo fui "evangelizado" por um cara que sentou do meu lado. Era um ex-cantor, agora pastor, que chegou a fazer parte da jovem guarda e depois perdeu tudo, drogou-se, drogou-se, drogou-se mais um pouco e depois encontrou Jesus. O cara chamava-se Luiz Carlos Clay, estava indo fazer uns cultos em algumas cidades bolivianas e aproveitou toda a viagem pra tentar me converter à sua tal seita. Bom começo de viagem!
Sem muitos atrativos, Santa Cruz apenas serve como entrada para explorar as outras regiões do país, justamente porque é o ponto final do famoso "trem da morte", que sai da fronteira com o Brasil. O negócio agora era rumar ao altiplano e conhecer a verdadeira Bolívia, desta vez sem a presença do pastor pop L.C. Clay.
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Catedral de Sta. Cruz de la Sierra
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Segui até Sucre num busão durante 17 horas. Uns 90% da estrada eram de terra, alguns trechos o ônibus tinha que cruzar alguns rios, os motoristas paravam e desciam pra ver a profundidade. Passamos em todos! Foi uma viagem difícil, mas era só a primeira e uma das mais fáceis dentre as inúmeras viagens atribuladas pelos países andinos. Ao meu lado sentou um boliviano e viemos comentando sobre a instabilidade política que o país vive. O primeiro contato com os nativos é sempre bom pra conseguir entrar no clima do país e entendê-lo melhor.
O altiplano boliviano foi habitado por diversas culturas, como a Chavín e a Tiahuanaco até o século XIII e posteriormente pelos grupos indígenas dos Quéchuas e Aymáras. Em 1530 chegam os espanhóis e escravizam alguns destes grupos para trabalharem em minas de prata do Alto Perú, nome que era dado ao atual território da Bolívia. Em 1825 ocorre a independência comandada pelo Marechal Sucre, enviado por Simón Bolívar. Desde então o país foi assolado por guerras civis, sucessivos golpes militares e guerras contra outros países em função de disputas de poder e território. A guerra mais marcante foi ao final do século XIX, quando o país perde sua saída ao mar para o Chile na famosa Guerra do Pacífico.
Na mesma época houve também a invasão de seringueiros brasileiros no norte do país (na atual região do Acre), forçando a Bolívia a vender o território para que assim se evitasse um difícil conflito. Anos mais tarde ocorre a Guerra do Chaco, onde o país disputa território supostamente rico em petróleo com o Paraguai, que termina com uma mediação internacional com uma divisão desvantajosa para a Bolívia.
Já em 1967, o exército do governo ditatorial boliviano, amparado por forças da CIA, captura e executa Che Guevara numa região de selva onde havia um foco guerrilheiro socialista por ele comandado.
Como se vê, a Bolívia sempre foi um país conturbado, foco de permanentes embates entre as populações indígenas e o governo, este sempre de caráter elitista. Assim, é cada vez mais comum as manifestações dos campesinos e indígenas através do bloqueio de estradas, ocasionando um colapso nas cidades, uma grande instabilidade política e troca constante de governantes, obviamente pelo fato da demanda social nunca ter sido justamente atendida.
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Sucre é uma cidade muito interessante, muita arquitetura colonial, muitos museus que guardam relíquias coloniais, religiosas e indígenas e também muito burburinho noturno, sabem! É também um importante centro universitário e possui muitas atividades culturais.
A cidade está a 2.750 m de altitude, o que já é um bom treino de aclimatação para continuar a subida até as próximas cidades que são mais altas. Sucre é a capital contitucional da Bolívia e abriga a sede do Poder Judiciário, porém, La Paz é a capital administrativa e concentra os outros poderes (Legistativo e Executivo). O nome da cidade vem de uma homenagem ao principal nome da independência boliviana: Marechal Antonio José de Sucre.
A Casa de la Libertad, antiga construção colonial na praça principal, foi o lugar onde realizou-se a Assembléia Constituinte que proclamou a independência do país.
Ainda em Sucre, conheci o Centro Cultural Masis, que faz um trabalho espetacular dentro da cultura e música boliviana. Promove oficinas e tem um grupo permanente que se apresenta em diversas regiões. Lá fui recebido com muita amizade e tive uma verdadeira aula sobre a cultura da Bolívia e suas manifestações artísticas.
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Sucre
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Suprema Corte de Justiça (esq.) e ruas de Sucre (dir.)
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Igreja de San Felipe Néri - Sucre
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O povo boliviano é muito humilde (não só economicamente) e são tímidos também. Mas depois de puxar uma conversa já vem aquele sorrisão sempre estampado por um dentão de ouro (todo mundo tem pelo menos um dente de ouro na boca), a única riqueza material de cada um porque, como vocês sabem, o país é bem pobre, muita gente na rua, mendicância forte gerada por uma segregação social secular entre indígenas e a minoria descendentes de espanhóis. Mas independentemente disso, as principais tradições indígenas ainda são cultivadas como rituais de devoção à Pachamama (Mãe Terra), o cultivo sagrado da folha de coca, a música, e as vestimentas, com destaque para as cholas e suas grandes saias chamadas polleras, seus xales coloridos e seus chapéus e cartolinhas que mudam de acordo com a região do país.
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Outro ponto alto é a refinada culinária boliviana. Tem algumas coisas que vendem na rua que até parecem de plástico, tem de tudo, espetinhos, gelatinas, uns sucos com um negócio sólido no fundo, sanduíches de ovo e tudo bem mergulhado no óleo (óleo de vários dias, é claro). Provei algumas iguarias como carne de llama e o chicharrón de pollo, que vem acompanhado de um milho pálido e com um grão bem grande. Mas no geral me adaptei comendo os tradicionais menús do dia, que começam com uma entrada, depois vem uma sopa, prato principal geralmente à base de frango e sobremesa. Detalhe: tudo isso por 13 bolivianos em média (menos que 2 dólares). Como deu pra ver é tudo muito barato, pra se hospedar é uma média de 3 a 5 dólares, e olha que agora estou num hotelzinho fuleiro aqui em Copacabana que sem dúvida é o campeão orçamentário: diária de 15 bolivianos (US$ 1,80).
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Tecedoras (esq.) e cholas (dir.) - Sucre
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Bom, de Sucre rumei pra Potosí. Como já estava quadrado do busão, resolvi me dar ao luxo de ir de táxi. É até comum os taxistas lotarem seus Toyotas caindo aos pedaços para viajar até as cidades vizinhas. Querem saber a bagatela? Apenas o equivalente a 3,50 dólares neste trajeto de 2h e meia!!! Mas também veio lotado num total de 5 pessoas e 1 cachorro. Eu fui no banco de trás e do meu lado tinha um casal boliviano todo apaixonado trocando juras: "te quiero amorzito", mas quando ela tocava no assunto casamento ele dava umas esquivadas que ficava até chato: "no lo piensas que somos muy jovenes cariño", e foi até Potosí neste clima e sempre ao som de sucessos bregas discotecados pelo condutor. Ahh, e por sorte o cachorro foi na frente no colo de uma boliviana.
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Aspecto colonial de Potosí
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Mercado Popular (esq.) e chola vendedora de grãos (dir.)
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Açougue bastante higiênico (esq.) e sede do partido MAS (dir.) - Potosí
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Potosí tem bastante história, e tudo a mais de 4.000 m de altura! Nos anos coloniais, por volta de 1.650 chegou a ter uma população maior que centros europeus como Roma e Paris por causa da cobiça gerada pelas grandes minas de prata. Mas hoje a prata acabou e tudo que foi tirado dali está na Espanha. Fui visitar as minas, daí você veste a roupa de mineiro, incluindo aquele capacete com lanterninha pendurada na aba, e vai entrando e descendo os níveis da mina, mas antes tem que assinar um formulário onde eles dizem que não tem responsabilidade nenhuma caso ocorra alguma coisa no bafo insuportável dos gases tóxicos lá de dentro. Entrando na mina, chega uma hora que fica muito empoeirado, falta ar e rolam vários gases tóxicos mesmo. De repente você tem que se encostar nas paredes pra deixar os carrinhos passarem pelos trilhos. Os túneizinhos são muito apertados, tem hora que você tem que rastejar. Mas o trabalho dos mineiros é uma grande exploração, eles não vivem mais que uns 50 anos porque estão lá expostos aos gases diariamente e sem proteção nenhuma. Tirando o fato que não ganham quase nada pelo que trabalham. Ahhh, e aqui comecei a mandar vários chás de coca pra amenizar os efeitos da altitude e também mascava folhas de coca, o gosto não é dos melhores, mas dá um levante e você não sente a altitude pegar.
Também em Potosí está a Casa de la Moneda, onde eram fabricadas as moedas e artefatos feitos com a prata extraída das minas. Hoje há um museu no lugar para ver e entender o processo de cunhagem de moedas.
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Antiga Casa de la Moneda (esq.) e seu pátio interno (dir.) - Potosí
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Interior das minas de Cerro Rico - Potosí
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Mineiro guiando o caminho (esq.) e carrinho de transporte (dir.)
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De Potosí fui pra Uyuni. Estrada toda de terra e umas paisagens desérticas! Pneuzinho furado logo no começo da viagem. Mas o pit foi rápido, os caras já estão acostumados, sempre fura. O ônibus é daqueles pequenos e todas as bagagens vão no teto, sua mochila chega "limpinha" no destino!
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Saída do ônibus pra Uyuni
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Estrada entre Potosí e Uyuni
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Uyuni é uma "megalópole", tem 1 km de raio. Está perdida no deserto essa ervilha. Mas lá é a base pra explorar o Salar de Uyuni, que é o maior deserto de sal do mundo, uma das paisagens mais impressionantes, numa das regiões mais desoladas do continente. Passei um dia no salar numa excursão de 4x4 e visitei uma ilha cheia de cactus chamada lsla del Pescado (que fica rodeada pelo salar), chegando depois até o pé de um vulcão. A paisagem é surreal. Há também uma construção feita inteiramente com blocos de sal localizada em pleno Salar, utilizada como hotel.
Na volta da expedição passa-se por um lugar chamado "cemitério de trens", onde há várias carcaças de trens que funcionavam em antigas linhas da região.
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Uyuni
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Isla del Pescado
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Hotel de Sal
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Vista do vulcão
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Cactus na Isla del Pescado
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Cemitério de trens
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Uma longa viagem
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A partir daí começam os maiores apuros: saindo de Uyuni para La paz, novamente numa estrada de terra (como deu pra ver, asfalto é raridade aqui), o busão tremia tanto que não dava pra escutar o discman porque ficava pulando direto. Uma chola veio do meu lado com uma criança de colo, conclusão: a criança se esparramou metade na mãe e metade em mim (fora o budum). Daí começa a baixar tanto a temperatura e as pernas congelam. Tinha gente que estava avisada disso e levou até sleeping bag pra se enfiar durante a viagem, eu não trouxe. Bom, já estava amanhecendo e estávamos quase chegando em Oruro (ainda faltavam uns 400 km para La Paz), quando parou tudo! A estrada estava bloqueada pelos campesinos, manifestações fervendo. O motorista da flota (ahh, busão aqui chama flota) deu um aviso pra todos: "não tem jeito de passar, estava tentando e ameaçaram jogar pedras, daqui não passo, quem quiser descer e tentar furar a pé pode ir, se não temos que esperar na flota". Daí desci, peguei a mochila e num pequeno grupo (3 bolivianos, 2 bolivianas, 2 espanhóis e eu), começamos a caminhada. O primeiro bloqueio foi pacífico pra passar, mas ainda faltava muito pra chegar ao outro lado e pegamos um atalho. Tinha chovido muito e estava tudo cheio de lama. Chegou uma hora que tinha um rio pequeno no caminho, tivemos que tirar os tênis, levantar as calças e atravessar. Meu pé saiu roxo, estava congelante a água. Bom, andamos um total de 2 h e meia e revezávamos entre os homens o carregamento das bagagens das mulheres que já estavam esbaforidas. Conseguimos então uma carona numa caminhonete e tentamos voltar pra estrada principal. Mas cada vez que íamos tentar tinha uma barricada e começavam a jogar pedras. Eu estava no porta-mala da caminhonete e me afundei entre as mochilas pra não ser apedrejado. Bom, então íamos cada vez mais pela estradinha atalho até que encontramos um ponto sem bloqueio e voltamos pra estrada. O cara nos deixou na rodoviária de Oruro onde pegamos outro ônibus direto a La Paz. Achei que estaria tranqüilo, mas na entrada de La Paz havia outro bloqueio, desta vez o povo enfileirou um monte de botijão de gás no meio da estrada, bom, daí já estava perto da cidade e furamos a pé de novo. Tempo total de viagem: 18 horas.
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Fiquei 5 dias em La Paz e o clima ainda andava um pouco tenso, algumas barricadas pelo centro, uma na esquina do meu hostel. Esta cidade, por estar situada num pequeno vale, tem seus arredores cercados pela cordillheira e um pouco mais adiante pode-se ver o monte Illimani todo nevado. No entanto, quando você está no centro de La Paz (no meio do vale portanto), pode ver em todo seu redor uma massa de favelas nas encostas das montanhas. Isto é mais ou menos a sensação de estar no meio de um estádio e que todas as arquibancadas fossem as favelas. O negócio é punk, mas a cidade é uma das mais peculiares que existem e também é a capital mais alta do mundo, com 3.650 m de altitude.
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Palácio Presidencial Quemado - La Paz
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Palácio Legislativo - La Paz
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Um lugar muito bom é o Mercado de las Brujas, onde se vendem quinquilharias de todos os estilos, inclusive fetos de llama (para os mais místicos). Tem também o Museo de la Coca, que conta toda a história da folha, seus usos e representações para a cultura andina, além do Museu de Instrumentos Musicais Típicos, o Museu Nacional de Arqueologia, o Museu Nacional de Etnografia e Folclore e o Museu de Arte Contemporânea. Aliás, fiquei surpreso com a música que encontrei na Bolívia, que vai muito além daquelas flautinhas de madeira e charangos que vocês estão acostumados a escutar no centro de SP, onde tem sempre um boliviano refugiado tocando, e o pior é que às vezes rolam versões dos Beatles, por exemplo, um "Yesterday" em versão de flauta andina (tem gente que acha relaxante! tipo um new age andino sabe?). Bom, mas aqui, bebendo na fonte da mais refinada e autóctone música boliviana, pude encontrar boas coisas, desde música tradicional até cantoras que misturam o tradicional com estilos hispânicos (tipo canção criolla, violões, cajones e instrumentos andinos), até jazz contemporâneo (alta calidad!).
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Mercado de las Brujas - La Paz
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Charangos (esq.) e ônibus urbano (dir.) - La Paz
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Continuando, e fechando o roteiro boliviano, fui pra cidade de Copacabana (3.810 m), nas margens do lago Titikaka, uma cidade muito sagrada para os bolivianos, assim como o lago, e é um centro de peregrinação no país. Durante o domínio Inca, Copacabana foi um local de sacrifícios humanos em honra da Pachamama, do Deus Sol e da Deusa Lua. Desta cidade, chega-se à Ilha do Sol, que é mais sagrada ainda, pois dizem que foi onde surgiram os primeiros Incas: Manco Kapac e Mama Ocllo. A ilha é toda recortada por terraços agrícolas, tem algumas ruínas e um visual do lago Titikaka num azul bem forte. Muitas llamas junto com os nativos também. Ahhh, e no lago pescam truta, que é muito boa.
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Copacabana
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Catedral de la Virgen de La Candelária (esq.) e festividades indígenas (dir.)
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Ilha do Sol
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Ilha do Sol e Lago Titikaka
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Neste clima místico fechei a viagem pela Bolívia e deu pra ver que em aspectos gerais é um país bem peculiar, com uma cultura forte e fechada no geral. Isso tem um lado bom porque muita coisa está preservada, não estão tão expostos ao lixo cultural que vem de fora, preservam tradições e por isso em qualquer parte você pode se deparar com desfiles típicos com bandinhas tocando na rua e não adianta perguntar o que estão comemorando, difícil entender as causas das celebrações. Por outro lado, por serem tão fechados não absorvem as coisas boas que possam vir de fora, conhecem muito pouco sobre o resto do mundo. Outra coisa, e talvez até tenha a ver com tudo isso, é que existe nas cidades um tipo de segregação entre lugares de turistas e lugares de nativos, principalmente em La Paz. Difícil um lugar meio a meio. Alguns bares, restaurantes e baladas pra gringos, com cardápio em inglês e som internacional que não tem nada a ver com o país. Aliás, quando estava na Bolívia, evitava estes lugares porque parecia que você estava num pub na Irlanda, nada a ver. Porém, se um dia eu estiver na Irlanda, também não vou num bar boliviano (mesmo porque não vai existir).
Uma outra curiosidade: quando você está num restaurante e entra alguém, essa pessoa sempre te fala "buen provecho" (bom apetite), mesmo que não te conheça. No começo era estranho mas depois me adaptei e já entrava nos restaurantes disparando "buen provecho" pra todo mundo.
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Viajar e conhecer a Bolívia, um país de traços tão fortes e uma cultura indígena admirável foi uma grande experiência. Ver de perto os costumes, as tradições, a serenidade, sabedoria e a forte ligação dos indígenas com a terra foi incomparável. No entanto, tanta beleza é deturpada em séculos de opressão desde a época colonial, mas o espírito aguerrido dos bolivianos sustenta sua forte cultura e agora clama por uma maior inclusão social. Novos rumos políticos estão por vir com a chegada das próximas eleições em breve, e o que está por vir só a história nos contará.
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Ilha do Sol
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Trajeto de barco pelo lago até a ilha
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Pequeno boliviano e suas lhamas
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Saudações!
Até o próximo boletim, já em terras peruanas.
Márcio.-
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