sexta-feira, 15 de junho de 2007

Boletim 2: Guatemala



Boletim 2: Guatemala



Antígua, 22 de Fevereiro de 2007
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Seguimos então com nosso folhetim itinerante edição 2:
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Cheguei na Guatemala no dia 12 de fevereiro, e quando desembarquei no aeroporto da capital (Cidade da Guatemala), quem me deu as "boas-vindas" foi um "simpático" oficial da imigração que já me separou pra fazer uma entrevista. Daí vai o diálogo:
oficial: -de onde vem?
eu: -de Cuba (comecei bem!)
oficial: -qual seu país?
eu: -Brasil (piorou!)
oficial: -Ahhhhh, país de Ronaldiño!!!! mas o que vem fazer aqui?
eu: -conhecer o país (tive que descrever meu roteiro inteiro)
oficial: -aonde vai ficar?
eu: -o senhor tem um quartinho sobrando em casa? (não respondi isso, mas deu vontade, só pra tirar uma com a cara dele)
oficial: -você veio pra cruzar pro México e depois pular para os EUA não é?
eu: -não senhor!
oficial: -vai, pode falar, você quer ir pros EUA não quer?
eu: -não senhor!!
oficial: -tudo bem, mas que você quer você quer, anda, fala vai?
eu: -não senhor!!!
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Representações Mayas
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Depois de negar tudo até a morte, o cara me liberou, fui pegar a mochila na esteira e, no corredor de saída, chegou um guardinha, me parou e refez toda a bateria de perguntas: EUA? EUA? EUA? NÃO! NÃO! NÃO!
Depois dessa recepção digna de Chefe de Estado, fui notando que os guatemaltecos (não os que trabalham no aeroporto) são receptivos, gostam de ajudar, conversar e explicar sobre o país. Fiquei só um dia na capital, que é suja, feia e sem muita coisa de interesse. Aliás, estas são características comuns a todas as capitais centro-americanas, talvez com exceção da Cidade do Panamá. No entanto, o que interessa está sempre nas outras regiões destes países.
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Catedral Metropolitana - Cidade da Guatemala
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Uma geral sobre o país: Ouvimos pouca coisa sobre a Guatemala no Brasil, e por isso ignoramos tudo que há por aqui. A população indígena Maya é maioria, representando 60% dos habitantes e concentrando-se no interior e principalmente no altiplano. As quatro maiores etnias Mayas são os Quiché, os Mam, os Kekchí e os Kaqchiquel. Já os "ladinos", mistura de espanhóis e indígenas, representam o restante e concentram-se na capital. Há também uma pequena população de negros chamados Garífuna, que habita a costa caribenha. Estes negros se espalharam pela costa centro-americana fugindo de colônias britânicas nas Antilhas quando eram escravos, por isso, além do idioma garífuna, também falam inglês. No total, são falados 25 idiomas na Guatemala, sendo que 22 são indígenas, mais espanhol, garífuna e um pouco de inglês, justamente naquela região da costa caribenha.
A história de desigualdade é o mesmo filme de toda a América Latina. Uma pequena elite ladina controla o poder e a riqueza. Devido a estas diferenças, o país viveu sob uma guerra civil durante 36 anos e as vítimas dos confrontos entre militares de direita e guerrilheiros de esquerda foram quase todas Mayas, milhares de indígenas foram torturados e mortos pelas milícias de direita. Por outro lado, a Guatemala também é um país que recebeu o Prêmio Nobel por 2 vezes. Primeiro em 1967, Nobel de literatura para o escritor Miguel Ángel Astúrias, suas principais obras foram "El Señor Presidente", uma crítica ao extenso regime ditatorial e "Hombres de Maíz", sobre a Cultura Maya. Depois em 1992, Nobel da Paz para a líder indígena Rigoberta Menchú, pela defesa dos direitos humanos na Guatemala, que tantas vezes foram e ainda são desrespeitados por aqui.
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Flores
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Seguindo o roteiro: Na manhã seguinte fui pra Flores, uma cidade no norte do país que serve como base pra conhecer o maior sítio arqueológico Maya, que é Tikal. Durante as 9 horas de viagem, sentou um guatemalteco do meu lado com um tic nervoso de fazer um estalinho com a boca. Eu tive que aguentar isso por 9 horas e não tinha como escutar música pra abafar o barulho porque o meu mp3 queimou 2 dias antes de sair do Brasil. Está difícil viajar sem música!
Tikal é um lugar equivalente a Macchu Pichu, com as devidas diferenças porque aqui era uma região Maya, e não Inca. O sítio está embrenhado no meio de uma selva bem fechada e o que rola de mosquito não é brincadeira. Tomei uma mordida no dedo de um pernilongo gigante e preto, que estava mais pra uma mosca maya. Inchou e coçou por 4 dias. Mas a recompensa de Tikal vale o cachê: é um conjunto de pirâmides gigantes (as maiores com 58 mts de altura), e dá pra subir! quando se chega lá em cima, você sai da linha da mata e enxerga o cume das outras pirâmides saindo do meio das árvores. Além das pirâmides, têm vários outros templos, cada um com suas funções: alguns eram moradia da nobreza, outros eram pra observação astronômica, outros pra definir o calendário Maya e apontar equinócios e solstícios e outros para cerimônias, inclusive de sacrifício.
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Templo IV - Tikal
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Templo de Las Calaveras - Tikal
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Base de um Templo
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Uma coisa que demorou um pouco para eu me acostumar na Guatemala foi o dinheiro. As notas são tão gastas e sujas que precisavam ser mandadas pra laboratório pra fazer uma análise e descobrir o valor. Só as notas maiores, de 50 e 100 são mais legíveis porque circulam menos e por isso sujam menos. As notas de 20, 10 e 5 têm que ir pro Delbony para análise pra ter certeza do valor. Pra se ter uma idéia do quanto é desvalorizado o câmbio aqui, a nota de 100 equivale a US$ 13. O nome da moeda da Guatemala é Quetzal, que é o pássaro símbolo do país, hoje muito raro de se ver, o bicho está em extinção.
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Templo I - Tikal
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Templo II - Tikal
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De Flores rumei pra parte central do país, até a cidade de Cobán. Essa viagem vale um relato completo: pra começar, 2 horas de atraso pra sair, o motorista foi almoçar e não voltava (teve pendências com a ex-mulher, me confessou depois). O esquema de transporte aqui não difere tanto do esquema dos países andinos, então eu já estava preparado. Os ônibus aqui são aqueles iguais aos que o Kevin Arnold voltava da escola com o Paul e a Winnie, ou seja, aqueles ônibus escolares americanos amarelões dos anos 60, que depois que viraram sucata nos EUA, foram mandados pra cá. Mas os guatemaltecos deram uma arte final, e mesmo caindo aos pedaços, fica um show a pintura dos busões. Eles pintam de vermelho, amarelo, azul, verde, todas as cores no mesmo ônibus e as bagagens maiores no teto, e dentro vai fruta, galinha, verdura, tudo que os indígenas comercializam de uma cidade pra outra. Bom,voltando ao trajeto Flores - Cobán: nesta viagem não era um school bus, e sim um micro ônibus normal, que sai quase vazio e durante o trajeto o cobrador vai pendurado na porta berrando o nome dos destinos pra conseguir mais passageiros. Depois de meia hora o busão já está lotado, com gente em pé, entram uns indígenas todos suados, que trabalham no campo e o aroma dentro do veículo fica delicioso. Aí começa a rolar só idiomas indígenas e eu de atração turística pra eles, que ficam olhando espantados a esta coisa que está destoando ali. Alguns vencem a timidez e me perguntam quem eu sou, eu respondo que venho do Brasil e alguns balançam a cabeça sem saber o que é Brasil, perguntam de novo, e na terceira vez eu simplesmente digo que é um outro país, falo do futebol e um tijuco lá na frente grita: aahhhhhhhRonaldiño!!!!! Pois é, o Ronaldinho é mais famoso que o nosso país!
Bom, enquanto isso o motorista toca o pau pra compensar os atrasos por motivos conjugais que ele causou. O micro ônibus entrava rasgando nas curvinhas. A sorte era que o nosso amigo condutor tinha a manha! mandava bem mesmo e estava dirigindo aquilo como se fosse um carro, e além de tudo ele estava muito resfriado e era um cara multi-função no volante, ao mesmo tempo que dirigia, assoava o nariz numa toalha (era a mesma toalha que ele checou o óleo antes de sair), espirrava na janela, comia salgadinho, atendia celular, tomava água, remédio, cantava sucessos bregas da cumbia e do regueton e, depois de tudo isso, ainda dirigia com um estilo lindo, nas curvas ele jogava o corpo pro mesmo lado da virada e o dedinho mindinho ficava levantado do volante, muita moral hein!
Outro cara polivalente era o cobrador porque, além das funções normais de berrar o destino e cobrar a passagem, ele pega as bagagens, sobe a escadinha até o teto, amarra as coisas e desce. Detalhe: ele faz tudo isso com o busão andando!!! Na primeira vez que parou e ele foi pro teto, eu não tinha percebido, daí pensei: putz, o motorista esqueceu o cobrador na última parada!!! daí quando eu olho pra trás (eu estava no último banco), ele está pendurado na escadinha, do lado de fora, e dei de cara com ele, mas eu dentro e ele fora!! e o motorista esmirilhando, dedinho empinado e tombando o corpo pro lado da curva, vai que vai...
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Semuc Champey - Cobán
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Ponte sobre o rio Cahabón - Cobán
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Semuc Champey - Cobán
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Cheguei vivo a Cobán, o motivo de estar ali era conhecer Semuc Champey, um lugar que tem umas lagoas rasas em forma de degraus e com água cristalina, difícil descrever, mais pra frente vou tentar mandar fotos. E depois fui pra Lanquín, também ali perto, um lugar com umas cavernas gigantes, só que aí não saiu nenhuma foto. Depois eu peguei um school bus coloridão pra Chichicastenango, uma cidadezinha do altiplano, com costumes indígenas muito preservados e que, junto com Otavalo no Equador, tem o maior mercado indígena das Américas, que acontece aos domingos, justamente o dia que cheguei (os cálculos do roteiro funcionaram). Esse mercado é loucura total, um movimento de gente e mercadoria pra todo lado, é galinha, artesanato, fruta, verdura, tudo que você quiser. O mercado é montado na praça da cidade e, na escadaria igreja, os mayas fazem oferendas aos seus deuses, enchendo a escadaria de flores e queimando folhas numa latinha, rola um fumacê tremendo. Tirei fotos boas neste dia.
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Mercado indígena - Chichicastenango
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Oferendas na escadaria - Chichicastenango
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Almocei no mercado para comer o típico, geralmente frango, tortillas, abacate, feijão em pasta e um refresco, ou de tamarindo ou de uma fruta típica que acabo de esquecer o nome. Os refrescos ficam num balde gigante e as tias mergulham a mão no balde pra encher o copo, tudo muito higiênico! No meio da confusão, comprei um prato, sentei e vi que não tinha faca, daí eu fui pedir uma e os caras começaram a rachar o bico da minha cara, conclusão: não vem faca, o frangão vai na mão e o garfo de pau ajuda a empurrar o resto.
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O futuro Maya
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O passado Maya
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Um adendo sobre os School bus: é engraçado porque como são ônibus escolares, o encosto dos bancos chegam só até a metade das costas e o espaço pras pernas entre os bancos é mínimo, justamente porque eram crianças que o usavam originalmente (vide K. Arnold). Mesmo eu, que possuo uma estatura digamos mais compacta, fico espremido entre os bancos e com metade das costas sem encosto.
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School Bus
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Daí rumei pra Panajachel, uma cidadezinha na beira do lago Atitlán, novamente num school bus. Carinhosamente chamado de "Pana" pelos mayas, este povoado é um lugar todo zen, e por isso ficou um pouco internacionalizado. Dá pra encontrar de tudo alí: mochileiros sujos, mochileiros um pouco mais limpos (meu caso), hippies e grupos de aposentados europeus endinheirados sempre acima do peso, com camisas floridas e papetes de solado super-aderente. Mas todos convivem em harmonia e o fim de tarde no lago, com vista para os dois vulcões que fecham a moldura, faz a alegria dos nativos e dos estrangeiros.
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Lago Atitlán (esq.) e San Pedro de La Laguna (dir.)
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Existem alguns povoados menores nas outras margens do lago, com cultura mais intacta. Peguei um barquinho em Pana e fui pra Santiago de Atitlán e San Pedro de La Laguna. Na vila de Santiago rola uma cerimônia Maya que é uma piração. Ali os nativos cultivam o Deus Maximón, representado por um boneco, que cada semana é transferido de uma casa a outra. Eu já tinha lido sobre isso e desembarquei ali querendo encontrar o amigo “Maxi”, perguntei pra um mayazinho se ele sabia onde ele estava. O moleque me levou até uma casa. Chegando lá, vi uma fumaceira e ouvi uma gritaria de rezas através de uma janela coberta por um pano. Eu não podia estar ali e não conferir de perto, foi quando o moleque me colocou pra dentro, pedi licença pro chefão do negócio e eu já estava dentro. Putz, o boneco fica no meio da sala escura, com chapéu, umas fitas penduradas, um cigarro na boca, aguardente pro santo, velas no chão, gritaria, santo baixando, santo subindo, santo baixando de novo... Foi difícil fotografar ali, mas não podia deixar passar. Pedi permissão mas não rolava, depois de um tempinho e uma conversinha (Ronaldiño pra lá, Ronaldiño pra cá), até o Maximón pode ser corrompido, e deixei um trocado no pezinho dele, daí fotografei! e como já tinha aprendido um pouco de idioma Quiché no busão pra Cobán, ainda agradeci no idioma: Maltiox, Maximón!!!
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Maltiox Maximón!!!
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Depois dessa piração toda, termino o roteiro guatemalteco em Antígua, uma cidade colonial toda bacaninha, com umas construções muito bem preservadas. Antígua já foi a capital do país e durante a época colonial, chegou a ser a capital do controle espanhol desde Chiapas (México) até a Nicarágua. Porém, um terremoto detonou a cidade e então mudaram a capital do país pra Cidade da Guatemala. Hoje Antígua já está reconstruída, atraindo gente do mundo todo. Há muitos estrangeiros que chutam tudo pra trás na Europa e se instalam aqui. Um exemplo foi um alemão que conheci, dono de uma lojinha de charutos, trabalhou como engenheiro a vida toda, chutou o balde e se instalou em Antígua, e está feliz da vida! Muito estrangeiro também vem pra estudar espanhol aqui e alguns ladinos da capital vem pra passar o final de semana. A Guatemala é isso aí, muito bom mochilar aqui. Aguardem a edição 3 do Almanaque Centro-americano: Honduras, em breve.
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Catedral de Santiago - Antígua
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Praça central de Antígua (esq.) e School Bus (dir.)
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Arco de Santa Catalina - Antígua
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Mulher Maya (esq.) e casas coloniais de Antígua (dir.)
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Arco de Santa Catalina e vulcão - Antígua
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Saudações a todos!
Márcio.-

2 comentários:

EliseHaas disse...

Muito legal essa da Guatemala! Como tu disseste, a gente não sabe nada da cultura de países tão próximos...
Abraço, e parabéns pela "inauguração" do blog, Elise.

Kats disse...

Mapas!! Please!! Faltou mapas!!! Favor inserir o roteiro (se não for pedir muito). Semuc Champey - Cobán: muito bonita a paisagem, morri de inveja de tua viagem neste trecho. O relato como sempre impagável. O desconhecimento da América Latina pelas próprias pessoas que nela moram nos torna estrangeiros junto aos sujeitos e locais com os quais temos mais em comum, se comparados a outros pontos do planeta. Uma forma de dominação eficiente, por assim dizer, desconhecimento dos lugares, das pessoas que nele vivem, da diversidade do mundo...